
Visita de Lula a Putin enfraquece coerência do Brasil – 07/05/2025 – Mundo
- Internacional
- 07/05/2025
- No Comment
- 36
Na política internacional, os gestos falam tanto quanto os tratados. A presença do presidente Lula (PT) em Moscou, ao lado de Vladimir Putin, durante o Dia da Vitória, em meio ao boicote da maior parte das democracias liberais, é um desses gestos que moldam percepções e alteram expectativas.
O Brasil afirma neutralidade no conflito entre Rússia e Ucrânia, mas os sinais que emite indicam outra coisa. Desde o início da guerra, o governo brasileiro buscou evitar alinhamentos formais. Recusou o envio de armas à Ucrânia, defendeu o diálogo com todas as partes e se colocou como potencial mediador.
Mas há limites para esse equilíbrio —e eles se tornam claros quando o comportamento do Brasil começa a se afastar dos princípios que historicamente defendeu.
A crise de coerência se aprofundou em 2023, quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de prisão contra Putin por crimes de guerra, pela deportação forçada de crianças ucranianas. O Brasil é signatário do Estatuto de Roma desde 2002 e teve papel importante na legitimação do tribunal.
Ao contrário das grandes potências militares, que se mantêm fora da jurisdição do TPI, o Brasil viu no tribunal uma ferramenta de equilíbrio e justiça internacional. Ainda assim, Lula declarou: “Se ele vier ao Brasil, não será preso de jeito nenhum. Quero muito estudar essa questão desse Tribunal Penal, porque os Estados Unidos não são signatários, a Rússia não é signatária —então por que o Brasil tem que ser?”
A pergunta ignora não só compromissos legais, mas o papel histórico que o Brasil buscou exercer na defesa de normas internacionais. A presença em Moscou reforça a imagem de um país que, na prática, se afasta das democracias liberais e se aproxima de um grupo revisionista. Evidentemente o revisionismo, por si só, não é um defeito. Críticas à ordem internacional vigente, marcada por desigualdades e hipocrisias, são legítimas. Mas o desafio é ir além da pauta negativa: não se trata apenas de rejeitar o que existe, e sim de propor algo melhor. Que tipo de ordem o Brasil deseja construir? Uma crítica sem alternativa se torna ruído. Um projeto construtivo exige coerência, clareza e aliados adequados.
Putin já deixou claro que defende uma nova ordem multipolar. Até aí, sem problemas: diversificar parcerias é benéfico ao Brasil. Mas a multipolaridade que interessa ao Kremlin remete à lógica do século 19, baseada na força e em esferas de influência. Ironicamente, a visão russa de ordem internacional hoje se alinha mais à lógica nacionalista e transacional promovida pelo trumpismo nos EUA do que ao modelo cooperativo historicamente defendido pelo Brasil.
A conjuntura atual, marcada pela erosão da ordem liberal, abre uma janela de oportunidade para o Brasil propor uma visão de ordem mais inclusiva, baseada em regras, cooperação multilateral e respeito ao direito internacional. Mas isso exige coerência. Ao marcar presença em Moscou nesse contexto, o Brasil corre o risco de chancelar um modelo de mundo com o qual não deveria se comprometer.
Talvez setores da diplomacia brasileira vejam nessa aproximação uma tentativa de ressuscitar a ideia de um novo “grupo de não alinhados”, remetendo, em espírito, à Conferência de Bandung de 1955, quando líderes da Ásia e da África buscaram afirmar autonomia diante das pressões da Guerra Fria.
A conferência foi um marco da afirmação do chamado Sul Global, com ênfase em soberania e solidariedade entre países emergentes. Mas Moscou não é Bandung. A guerra na Ucrânia não é uma disputa entre blocos coloniais rivais, mas sim o caso de uma potência autoritária invadindo um país mais fraco e soberano. Nesse contexto, a impressão de apoio a regimes que desrespeitam normas basilares do direito internacional não fortalece a autonomia brasileira —enfraquece sua coerência.
A força da política externa brasileira sempre esteve em sua capacidade de articular interesses com valores, construindo pontes sem abrir mão de princípios. Para continuar relevante no debate global, o Brasil precisa projetar estabilidade, previsibilidade e compromisso com uma ordem baseada em regras —não apenas de independência, mas de direção. Em política internacional, os gestos de hoje moldam as oportunidades de amanhã.