
Tabaco deve ser tratado como arma, diz secretária – 27/07/2025 – Equilíbrio e Saúde
- Saúde
- 28/07/2025
- No Comment
- 2
O tabaco é um produto único, diz Vera Luiza da Costa e Silva, secretária-executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq). Único porque mata e, por isso, deve ser tratado como uma arma, defende.
“Um em cada dois usuários morre por causa desse produto, ou adoece. Se fosse hoje que tentassem entrar com o produto no mercado, não iriam conseguir”, afirma.
Em 2025, ano que marca o vigésimo aniversário do tratado antitabagismo da OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil registrou o primeiro aumento na prevalência de fumantes adultos em 18 anos, segundo dados preliminares da pesquisa Vigitel. O Ministério da Saúde afirma que houve um crescimento de 9,3% para 11,6% na proporção de adultos fumantes.
Referência na luta antitabagismo, ela credita o cenário aos baixos preços dos produtos fumígenos e afirma que o país está indo pelo caminho certo com o imposto seletivo previsto na reforma tributária, mas critica o que chama de lobby da indústria no Congresso para a aprovação dos DEFs (dispositivos eletrônicos para fumar). Mais do que falhos para redução de danos, considera os DEFs uma porta de entrada para o consumo de nicotina, especialmente entre o público mais jovem.
Para a secretária, não deve ser dada oportunidade de diálogo às empresas tabagistas. “Os objetivos da indústria são diametralmente opostos aos objetivos da saúde pública. Não há como coadunar”, diz, em entrevista à Folha.
Desde a adesão à Convenção-Quadro, o Brasil reduziu o número de fumantes, mas dados de 2024 apontam para o primeiro aumento na prevalência de fumantes adultos desde 2007. Ao que a sra. atribui isso?
O aumento provavelmente foi por conta dos baixos preços dos produtos fumígenos no Brasil. A partir de 2016, o país não teve ajuste de preços e a relação entre cigarro com preço baixo e consumo é direta, porque você aumenta o poder de compra, a facilidade para comprar produtos de tabaco.
Associado a isso, tem sido bastante publicada toda uma resenha sobre cigarros eletrônicos. A indústria usa muito o argumento de que esses dispositivos servem para substituir os cigarros comuns, de que precisam ser regulados, quando, na verdade, já são. A proibição é uma forma de regular um produto. Argumentam que é preciso saber o que contém [nos dispositivos], mas mais de 30% dos cigarros consumidos no mercado brasileiro, apesar da legalidade dos cigarros, são produtos ilegais e ninguém sabe o que tem dentro. Legalizar um produto não evita o contrabando.
A ideia do cigarro eletrônico como forma de redução de danos ajudou a alastrar o uso do vape?
Nas últimas séries do Vigitel, houve pequeno aumento na faixa dos 40 anos de idade, mas no resto da população, não. O fato de o produto ser proibido fez com que a população não fosse exposta ao marketing desses produtos. Além disso, os DEFs são mais caros do que o cigarro.
O que a indústria argumenta é que existe uma redução de danos, mas na prática, o indivíduo tem uma fonte livre de nicotina em quantidade. É uma droga que não serve para outra coisa a não ser causar dependência, e há muito estímulo social para o uso. Mas a concentração do uso é na população de média e alta renda, por conta do modismo e da disponibilidade. Não na população mais baixa, porque não tem acesso.
A Inglaterra foi um dos primeiros países a adotar o cigarro eletrônico como estratégia de redução de danos em 2023, mas agora o Reino Unido anunciou que iria proibir o uso de vapes descartáveis a partir de 2025. O que aconteceu no meio tempo?
Houve um patrocínio do estado para que a população substituísse o consumo de cigarros regulares por DEFs. Na prática, o que aconteceu foi uma captura dos adolescentes para esse tipo de produto. Então, eles criaram uma nova geração de dependentes de nicotina. O que é péssimo do ponto de vista de controle do tabagismo, porque há uma série de outros produtos que vem junto com a fumaça da nicotina, e a gente só vai saber o impacto disso quando tivermos mais tempo de pessoas usando. Foi o que aconteceu com os cigarros e as estatísticas de câncer de pulmão que aumentaram.
A proibição foi por causa do boom de consumo entre adolescentes e adultos jovens. Não há interesse para a saúde pública do Reino Unido que isso aconteça. E o boom do consumo nesse público acontece mais em dispositivos descartáveis. No Canadá, por exemplo, os DEFs eram proibidos, mas quando liberados, houve aumento entre adolescentes. Nesses países, um grande atrativo dos vapes é a tecnologia e os sabores. No Brasil, há uma proibição dos aditivos nos produtos, a indústria entrou com uma ação e a decisão está no Supremo Tribunal Federal. A última coisa que a indústria quer é que se proíba aditivos, porque se reduz o consumo, a experimentação, a causalidade da dependência.
À época, em entrevista à Folha, a sra. criticou o lobby da indústria do tabaco no Judiciário. O que mudou desde então?
Um primeiro julgamento garantiu o poder de regulação da Anvisa, mas houve empate, então a proibição não teve caráter vinculante nos estados. E a indústria continua usando aditivos.
Cigarro só serve para viciar a pessoa em nicotina. Não tem nenhuma função no indivíduo, na sociedade. Cigarro não serve para nada, só para matar. Um em cada dois usuários morre por causa desse produto, ou adoece. E os DEFs são na mesma linha. Se fosse hoje que tentassem entrar com esse produto no mercado, não iam conseguir.
Por quê?
Por que regularizar um produto que mata? Qual é o benefício para a sociedade? Imagina, uma população onde ninguém é dependente de cigarro, e eu tenho um produto para comercializar que mata um em cada dois consumidores. Ninguém ia querer registrar um negócio desses. E não é só isso, a pessoa sofre. Câncer, doença cardiovascular, AVC. A família sofre, há o custo para o SUS. Em 2022, R$ 8 bilhões se arrecadaram com imposto sobre cigarros. Mas se gastou R$ 150 bilhões com doenças, aposentadorias, invalidez diretamente relacionadas ao cigarro. Que conta é essa?
E a indústria se dá o direito de fazer lobby em tudo quanto é lugar. Eles têm a bancada do fumo no Congresso, dão entrevista como se fossem cidadãos normais. Não são. Tabaco não é um produto como qualquer outro, é um produto como arma. Não tem que fazer propaganda pública. Existe nas Nações Unidas uma iniciativa que se chama Global Compact, onde as empresas que resolvem trabalhar com a agenda de desenvolvimento sustentável se cadastram. Existia cadastro das empresas de tabaco. A gente conseguiu tirar isso com base no fato de que o produto de tabaco é único.
Não é porque é legal que tem que ser tratado como os outros. Não dá para dar as mesmas oportunidades para a indústria do tabaco se sentar à mesa, porque os objetivos da indústria são diametralmente opostos aos objetivos da saúde pública. Não há como coadunar. É por isso que a Convenção-Quadro tem um artigo que fala que os governos devem proteger as políticas públicas da interferência da indústria do tabaco.
Até que ponto a sociedade se mobiliza para frear a aprovação dos DEFs via Congresso?
Acho que a sociedade se mobiliza bastante. Por exemplo, a ACT Promoção da Saúde, uma coalizão que é formada por mais de 100 organizações no Brasil, é super presente no Congresso. Quanto às sociedades médicas, existe uma unanimidade no Brasil. Todas são a favor de manter a proibição dos DEFs. As revisões que a Anvisa fez são muito claras. Não existe valor agregado em trazer isso para a sociedade brasileira. Não existe valor em redução de danos, em substituir cigarros comuns, em controlar comércio ilícito, em conhecer sua formulação.
Então é puro lobby no Congresso. Lobby do Senado e da Câmara dos Deputados, de parlamentares que cobram da saúde um posicionamento em relação a produtos do tabaco, quando na verdade, deviam estar apoiando o trabalho do Ministério da Saúde, o trabalho da Conicq, deviam estar cumprindo o tratado internacional no Brasil e não fazendo lobby para a indústria nem formulando propostas que são contra a população brasileira.
Qual é o nível de influência da indústria na produção de estudos sobre o cigarro eletrônico?
Muito. A indústria compra e publica estudos onde não é clara a metodologia usada, não há revisão por pares, não fica claro que o estudo foi financiado. A indústria têm se acercado de universidades brasileiras para promover estudos que ela paga, de órgãos brasileiros para promover estudos para servir aos interesses dela. Depois, usa esses resultados para sustentar as suas propostas políticas.
Esses estudos são publicados em revistas científicas de alto impacto?
As revistas mais importantes já não aceitam mais estudos que tenham como financiador a indústria do tabaco. Isso é um posicionamento crescente na sociedade. Achamos, inclusive, que as revistas brasileiras devem usar esse mesmo princípio de que estudos promovidos pela indústria do tabaco não devem ser aceitos para publicação.
Faltam estudos independentes para mensurar o impacto dos cigarros eletrônicos?
Não. Já tem um volume imenso de estudos mostrando que eles não servem para redução de danos, que geralmente o usuário de DEFs usa cigarros comuns junto, porque o indivíduo se torna dependente da nicotina. Se não consegue porque o preço é caro, ele vai para o cigarro. Então, os cigarros eletrônicos são como porta de entrada para os cigarros comuns. E quando você associa os dois, aumenta o risco de doenças quando comparado com o uso isolado dos cigarros comuns.
O lançamento constante de novos dispositivos é uma barreira para a produção científica entender os impactos deles?
Não. O que é barreira para produção científica é o tempo. Não tem como aplicar o consumo de DEFs em uma população para estudar prospectivamente. Só o uso voluntário das pessoas que vai servir para comparar quem usou com quem não usou, para você saber qual foi o efeito. Então, o tempo é o grande inimigo, porque vão surgir novidades, mas é preciso um prazo para estudar os diversos impactos sobre a saúde.
A atual reforma tributária e o imposto seletivo são avanços na tributação do tabaco?
Completamente. A gente só precisa garantir que as alíquotas sejam progressivas, que elas sejam corrigidas, que é o que saiu na lei complementar. E que, em paralelo, o país faça um trabalho muito bem articulado para eliminação do comércio ilícito de cigarros comuns.
Sobre isso, há uma falha de fiscalização por parte da vigilância sanitária?
Acho que são poucos fiscais para o tamanho da demanda no país. Tem trabalho sério sendo feito pela Anvisa, pela Receita Federal, pela Polícia Federal. Temos acompanhado isso de perto. Existe um protocolo preliminar do comércio ilícito de produtos de tabaco que implementamos no Brasil. Hoje, é preciso atualizar o sistema de rastreamento e localização, fazer com que pegue toda a cadeia produtiva, desde os galpões de fumo até o consumidor. É preciso um melhor entendimento do sistema de licenciamento de venda de produtos fumígenos no país. Quem vende, onde vende, como vende?
Para estabelecer as medidas de controle em relação a isso, é preciso ter todo esse sistema de lavagem de dinheiro dos grandes contrabandistas muito bem monitorado. Também precisa do Banco Central, porque existe um processo para comércio ilícito que se chama “follow the money”, ou seja, tem que seguir o dinheiro para entender quem está por trás daquilo. Tem que conscientizar a população sobre o ilícito. As campanhas contra os DEFs têm que trazer o fato de que o indivíduo está azeitando todo um esquema de criminalidade, e fazendo mal para a saúde pública e econômica do país.
Muitos países estão se preocupando com a febre do consumo dos vapes entre adolescentes. Quais estratégias os pais podem adotar para evitar que os filhos fiquem dependentes?
Isso é como acesso a qualquer tipo de droga. Acho que muita conversa, muita proximidade, muito entendimento e menos tela. Pensa bem, se você tem milhares de pessoas morrendo por causa de cigarros todos os anos, alguém tem que substituir esses fumantes. Quem é que vai substituir? É preciso criar um novo grupo de dependentes de nicotina.
Qual caminho o Brasil deve tomar para evitar o retrocesso nas incidências de tabagismo?
Aumentar impostos e preços, continuar vigilante com o comércio ilícito, manter as políticas de advertências sanitárias, manter a proibição dos dispositivos eletrônicos para fumar e manter a proibição sobre qualquer outro produto de nicotina que queira entrar no mercado.
Raio-x | Vera Luiza da Costa e Silva, 73
São Paulo, 1952. Médica e doutora em Ciências da Saúde, é hoje secretária executiva da Conicq e
pesquisadora sênior do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab) da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), do qual foi fundadora. Foi chefe do secretariado da Convenção-Quadro da OMS para o Controle do Tabaco (2014-2020), diretora da Iniciativa Sem Tabaco da OMS (2001-2005) e diretora da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) – Controle do Tabaco (2007).