
Novas pesquisas reforçam o impacto positivo da prática da espiritualidade para o cérebro
- Religião
- 18/07/2025
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Tão antiga quanto a humanidade é a busca filosófica por compreender nossa existência e origem. Desde os primórdios, as civilizações se esforçam para atribuir significado à presença humana na Terra. A busca incessante por respostas passou por aspectos sobrenaturais, dando início a complexos sistemas religiosos, repletos de crenças e rituais. Impossíveis de serem comprovadas na prática, tais explicações foram historicamente aceitas como dogmas irrefutáveis até o século XVI, quando a invenção do método científico passou a colocar tais hipóteses à prova, substituindo, aos poucos, o divino pela racionalidade. As religiões, contudo, nunca perderam sua capacidade de moldar culturas, disseminar valores e transformar contextos sociais, constituindo um mistério para a própria ciência. A novidade: novos estudos jogam luz sobre aspectos ainda pouco conhecidos da espiritualidade.
Recentes linhas de pesquisa deixaram o tabu de lado, ao misturar a fé e a ciência, em fascinante movimento de conhecimento. Ou, posto de outro modo, mais direto: trata-se de investigar a ação da espiritualidade no cérebro de quem crê. “Uma investigação sobre religiosidade é crucial para a compreensão do cérebro e da vida. Está na hora de expandi-la”, anotou o renomado neuropsicólogo americano Jordan Grafman, professor de medicina da Universidade Northwestern, em editorial publicado na reputada revista Nature. Seu trabalho demonstra que a fé não é apenas um produto cultural, mas também uma possível característica enraizada na arquitetura da mente.
Ao longo da evolução, desenvolvemos mecanismos específicos que predispõem à experiência religiosa, como se tivéssemos sido biologicamente “programados” para acreditar em forças superiores. Não se trata, é claro, de supor que no laboratório seja possível comprovar a existência ou a inexistência de Deus, mas é investigação interessante demais para ser desdenhada. O vasto trabalho conduzido por Grafman identificou padrões de ativação neural durante orações e práticas religiosas, desencadeando a liberação de endorfinas e dopamina, substâncias diretamente associadas à sensação de prazer e bem-estar. Elas atuam no sistema límbico, a área do cérebro que abriga o mecanismo de recompensa, o mesmo estimulado pelas drogas e pela atividade sexual.
A descoberta ajuda a explicar o profundo conforto emocional e a percepção de conexão transcendente relatados por praticantes de diversos credos. Do ponto de vista neurocientífico, a sensação gerada por essas experiências cria um círculo virtuoso: quanto mais se reza, mais há motivação para seguir adiante. “Se você acredita que Deus o ajudará, esse sistema de crenças pode influenciar suas atitudes para lidar melhor com situações problemáticas”, disse Grafman a VEJA. Quem é fiel assente: “Ao orar, ponho meus problemas e minhas ansiedades nas mãos Dele, e sei que Ele sabe o que é melhor para mim”, afirma a estudante de publicidade Ester Medeiros, de 24 anos, frequentadora de uma igreja evangélica.
Ao conversar com Deus — “dar as costas, caminhar, decidido, pela estrada que ao findar vai dar em nada”, como na linda canção de Gilberto Gil —, o cérebro também ativa o córtex pré-frontal, área responsável pela atenção, planejamento e sensação de controle, fazendo com que o corpo reduza a produção de cortisol, aplacando o estresse e a ansiedade. Para a ciência, esse mecanismo se assemelha a uma espécie de “efeito placebo espiritual”, em que se desencadeiam respostas biológicas reais, mesmo sem qualquer intervenção física direta ter sido realizada. Ou seja, a espiritualidade é tão poderosa que pode fazer com que o cérebro “se renda” ao processo. “Fazemos rituais com a expectativa de obter um retorno positivo, pedindo para sermos atendidos em nossas orações, e o cérebro passa a acreditar nisso”, diz o psicólogo alemão Ronald Fischer, que conduz um estudo com 12 000 brasileiros.

Longe de reduzir a fé a meros processos biológicos, os achados de Grafman e seus colegas destacam a complexa interação entre a ciência e a religião — um percurso com que até os mais ilustres cientistas, como Albert Einstein, Carl Sagan e Stephen Hawking, acabaram deparando (veja frases em destaque abaixo). Se o cérebro humano, na intimidade, parece predestinado a se entregar a experiências místicas, convém não esquecer da parte pública dos resultados ruins desse casamento com o indizível, digamos assim. “Ao longo da história, a religião amplificou conflitos, a polarização e a opressão”, afirma Grafman. Ele ressalva, porém: “Mas aumentou a coesão social, a empatia e o comportamento altruísta”.
Os aspectos positivos e negativos da espiritualidade, apontam as novas descobertas, estão diretamente ligados à maneira pela qual a fé é exercida. O fanatismo e o pensamento dogmático, por exemplo, ativam circuitos neurais relacionados à amígdala, estrutura ligada às respostas emocionais imediatas, e do córtex cingulado anterior, associado a processos de conflito e rigidez mental. Padrões pouco flexíveis de pensamento e o fundamentalismo inibem conexões neurais que incentivam a criatividade e a capacidade de inovar e de se adaptar a diferentes contextos.
Para os céticos, ateus e agnósticos, os resultados publicados pela Nature (e que de algum modo ecoam experiências feitas com monges budistas há uma década) entregam outro tipo de mensagem: ter gosto por algo, sem exageros nem extremismo, é atividade saudável, mexe com os neurônios e nos leva a querer mais. Pode ser o gosto por um Deus, qualquer Deus, e aos descrentes cabe respeito permanente pelas diferenças. Invertam-se as posições, e os religiosos precisam também acatar aqueles sem credo algum. Os dados mais recentes do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam: o número de pessoas que dizem não ter crenças definidas saltou de 7,9% para 9,3%, na última década, somando 16,4 milhões de pessoas. “É cada vez mais comum encontrar gente que transita entre religiões por não sentir seus anseios atendidos”, diz a antropóloga Joana Bahia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Leio livros espíritas, consulto cartomante, estudo a Bíblia e sempre começo meu dia com uma oração. Tudo isso me traz paz e proteção”, resume a advogada Thassia Hollanda, de 40 anos. Quem tem fé anda com ela; afinal, a neurociência informa: ela não costuma falhar.
Eterna discussão
A existência de Deus e aquilo que a ciência não explica também intrigaram os pensadores que investigaram a origem do universo e da humanidade



Publicado em VEJA de 18 de julho de 2025, edição nº 2953