
Estudo brasileiro investigou genética por trás da…
- Religião
- 01/03/2025
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Nas últimas semanas, circulou amplamente um estudo brasileiro que se propôs a avaliar as bases genéticas da mediunidade. O resultado veiculado pelos autores chamou atenção: uma lista de genes poderia sugerir que os investigados teriam uma “maior permeabilidade do filtro cerebral”. Mas será que essa constatação está embasada em ciência?
Para fazer a investigação, os cientistas compararam 54 médiuns – pessoas que, de acordo com as suas comunidades, têm contato com espíritos – com familiares de primeiro grau sem os mesmos ‘dons’ espirituais. Para saber o que havia de fundamentalmente diferente entre eles, os pesquisadores fizeram estudo de exoma, que avalia genes que dão origem a proteínas. “A pergunta é o que faz essas pessoas terem essas vivências?”, diz o psiquiatra Alexander Moreira Almeida, professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos líderes da pesquisa. “Tudo nesse estudo é novo.”
A ideia parece fazer sentido. Ao comparar os médiuns com seus familiares, supostamente seria possível saber se houve algum tipo de mutação naquele indivíduo que explicasse a vivência mediúnica. Os resultados, publicados no Brazilian Journal of Psychiatry, dão conta de mutações em 33 genes que estavam presentes em ao menos um terço dos médiuns, mas não em seus parentes próximos. De acordo com Wagner Gattaz, autor do estudo e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, uma hipótese possível é a de que “aspectos genéticos facilitem a percepção de fenômenos que não são percebidos pela maioria das pessoas”.
Há, contudo, uma observação importante. Apesar da lista de genes encontrada, as análises estatísticas apontam que não foram encontradas associações significativas entre os genes mutados e as habilidades mediúnicas – na linguagem científica isso quer dizer que não é possível dizer com segurança se esses genes têm mesmo alguma relação direta com a mediunidade ou se eles apareceram de forma aleatória.
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Pesquisadores da área receberam as interpretações do estudo com reticência. “Essas são afirmações de crentes religiosos que querem fazer os dados se curvarem à realidade de suas crenças religiosas, mas sem qualquer sucesso”, diz Wellington Zangari, pesquisador do Instituto de Psicologia da USP e co-coordenador do Laboratório de Estudos Psicossociais: crença, subjetividade, cultura & saúde. “Essas afirmações, além disso, são um desserviço para a própria área de estudo.”
Qual o problema com o estudo que investiga a genética por trás da mediunidade?
De acordo com todos os pesquisadores consultados, o principal problema está no desenho experimental, ou seja, na maneira como o experimento foi pensado. “Trata-se de um estudo cujas deficiências não permitem dizer nada a respeito da espiritualidade, da religiosidade, nem mesmo das experiências mediúnicas ou espirituais”, diz Zangari.
Isso acontece porque “médium” não é um conceito objetivo e pode significar várias coisas diferentes a depender de quem está dizendo. Médium pode ser alguém que diz ouvir algo, por exemplo, mas também pode ser quem diz apenas sentir presenças espirituais ou quem diz incorporar esses espíritos. São possibilidades muitos diferentes que são validadas socialmente, mas que não possuem evidências concretas de serem consequências de um mesmo fenômeno físico, químico ou biológico.
“Chamamos isso de ciência da fada dos dentes, um termo cunhado pela pesquisadora americana Harriet Hall para estudos que aplicam o método científico em qualquer premissa, mesmo que ela não seja verdadeira”, diz Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência. “Você pode fazer altas análises científicas sobre a fada dos dentes – é possível saber qual o valor médio deixado debaixo dos travesseiros, qual o tamanho médio dos dentes, que países colocam mais ou menos dentes – e os resultados estatísticos serão significativos, mas isso não prova que a fada dos dentes existe.”
Isso não quer dizer que esse fenômeno não possa ser estudado, mas o mais recomendado seria investigar cada uma das experiências separadamente – apenas pessoas que dizem ouvir ou apenas pessoas que dizem sentir, por exemplo – para que fosse possível haver uma homogeneidade maior entre o grupo. É como se ao invés de tentar procurar diferenças entre frutas e vegetais, optássemos por comparar bananas e alfaces. Na ciência é mais fácil e produtivo trabalhar com coisas muito específicas (pessoas que dizem ver algo ou bananas) do que com coisas mais genéricas (pessoas que se dizem médiuns ou frutas).
Mesmo que isso fosse feito, não seria possível dizer que a mediunidade existe, mas seria possível dizer que um determinado fenômeno (dizer que vê coisas que outras pessoas não veem) está associado a um determinado fato concreto (uma lista de genes mutados).
Há ainda outros problemas. Além de ser um grupo muito pequeno para um estudo genético, que usualmente precisa de centenas de pessoas para gerar resultados confiáveis, o estudo comparou os médiuns apenas com familiares, mas não levou esse fator em consideração na análise estatística (cálculos matemáticos feitos para saber se os resultados são ou não relevantes). “Isso pode fazer com que o estudo dê muitos falsos positivos”, explica Luiz Gustavo Almeida, doutor em microbiologia e diretor de educação do Instituto Questão de Ciência. “Só esse fato já invalida bastante os achados do estudo.”
Para que o resultado fosse mais robusto, o mais apropriado seria comparar os médium com mais grupos – com familiares, com médium que vivem experiências diferentes e com a população em geral, por exemplo. Caso o mesmo resultado aparecesse em todas as comparações, seria mais seguro dizer que determinada característica biológica é exclusiva dos médiuns e não está presente em outras populações.
Para Zangari, o estudo decepciona. “Isso pode dar a impressão que esse campo está contaminado de pseudocientistas ou proselitistas religiosos cujo interesse é unicamente usar a ciência em benefício de suas convicções de fé”, afirma.
Mas afinal, é possível estudar religião do ponto de vista científico?
Para muitos pesquisadores, uma investigação científica nunca será capaz de dizer se Deus ou se espíritos existem – e não há qualquer problema nisso. O fato de a ciência não conseguir provar, não significa que aquela experiência não tenha relevância social.
É possível, contudo, investigar fenômenos concretos. Hoje, pesquisadores que estudam as chamadas experiência não ordinárias – como as possessões ou as experiências de quase morte – tentem investigar quando elas são positivas e quando podem ser consideradas patológicas. Também há quem investigue a importância dessas experiências no desenvolvimento ou na cura de doenças.
“É preciso ser muito específico no que você está pesquisando”, diz Carlos Orsi, divulgador científico e diretor do Instituto Questão de Ciência. “Alegações objetivas podem ser testadas, o problema é que muitas pessoas não gostam dos resultados. Há correntes filosóficas, contudo, que argumentam não haver razão para investigar fenômenos estritamente subjetivos.”
Mas pode haver uma importância nisso. “Estudo fenômenos religiosos à luz da psicologia por considerar que eles são relevantes para compreender a subjetividade humana e a relação desta com o mundo da cultura”, explica Zangari.
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