Secas severas impactam produção de farinha na amazônia – 30/09/2024 – Ambiente

Secas severas impactam produção de farinha na amazônia – 30/09/2024 – Ambiente

A atmosfera é de desolação no barco flutuante de Henrique Alcione Batalha, 55. O espaço é a casa e a base logística do pescador. Está limpo, vazio e silencioso, ancorado nas águas paradas do paranã do Capivara, um dos incontáveis tributários do rio Solimões. A comunidade São Francisco do Capivara está logo em frente.

Alcione, que mora sozinho no flutuante, está de mãos atadas. Ele pesca o pirarucu, o peixe gigante que é símbolo da amazônia. A pesca é feita dentro de um plano de manejo, que inclui vigilância, contagem e captura em períodos e quantidades certos, com retorno financeiro decisivo a dezenas de comunidades na região do médio Solimões. Os pirarucus, porém, estão inacessíveis.

A sequência de secas extremas, com vazantes sem precedentes em 2023 e em 2024 na região, isolou os lagos onde estão os peixes. O igarapé que leva aos lagos virou um fio d’água e está intransitável. Os furos, cursos d’água ainda menores e que conectam o igarapé aos poços, desapareceram.

A autorização para a captura de 650 pirarucus adultos já foi dada, mas os pescadores da comunidade não têm o que fazer a não ser esperar.

As famílias perdem renda, passam por dificuldades para comprar alimento e água, enfrentam a insegurança alimentar.

“A situação está cruel nesses dois anos [2023 e 2024]”, diz Alcione. “Este ano ainda está pior, a água desceu muito rápido. E o rio continua vazando.”

Sem água, os produtores artesanais de farinha de mandioca —a base da alimentação na região amazônica— também vivem rotinas cada vez mais penosas no médio Solimões.

As comunidades estão sem rios, igarapés e poços para o repouso da mandioca, necessário para o amolecimento do tubérculo. Passaram a improvisar em tanques de plástico.

A água que chegava perto das casas de farinha —as chamadas “cozinhas de forno”— não existe mais. Os mais jovens, então, transportam na cabeça ou nas costas sacos de 70 kg a 80 kg, após a torra nas cozinhas. Caminham de 15 minutos a uma hora e meia até um curso d’água.

Não há mais rios caudalosos para o transporte dos sacos de farinha até Tefé (AM) e, de lá, para Manaus. Barcos grandes, então, são substituídos por canoas, com transporte fracionado da farinha. Um percurso de uma hora se transforma em seis horas.

Na comunidade Apuí, na região do lago Tefé, Adriel Fonseca Cacheado, 27, participa de todas as etapas de produção. Faz a torra em grandes tachos. Ensaca. Transporta, nas costas, o saco com mais de 70 kg de farinha até a beira do rio. Repete esse movimento oito vezes numa mesma tarde. Acorda cedo no dia seguinte e inicia a jornada até Tefé numa embarcação de pequeno porte.

“A nossa família, que tem oito pessoas, vem conseguindo produzir essas oito sacas por semana. Na cheia, conseguimos fazer 15”, diz Adriel. “Todo esse caminho, na cheia, é por água, da minha casa até o porto.”

Os impactos da crise climática são sistêmicos. A realidade do pescador Alcione é semelhante à de 1.200 pessoas, de 42 comunidades no médio Solimões, envolvidas na pesca monitorada do pirarucu. O plano de manejo conta com assistência do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

A captura do pirarucu pode render um ganho bruto de até R$ 5.000 por pessoa. Numa feira, o quilo do peixe é vendido por R$ 10 a R$ 12.

Alcione e mais dez pescadores de São Francisco do Capivara organizaram uma pesca de sulamba no começo deste mês. Disseram ter pescado duas toneladas de peixe. Cada um ganhou R$ 350.

Na produção de farinha, assim como Adriel, milhares de agricultores passaram a trabalhar mais e a buscar adaptações em mais um ano de seca extrema, descrita por alguns como ainda pior do que a vivenciada em 2023.

Somente na região de Tefé, existem 3.575 agricultores que cultivam mandioca, segundo dados do governo do Amazonas. Manaus é o principal destino da farinha produzida no médio Solimões. Em todo o estado, existem 18,4 mil casas de farinha tradicionais, que envolvem famílias inteiras e técnicas seculares.

Para o manejo do pirarucu e para a produção de farinha, a água e o tempo de cada etapa são decisivos. As secas extremas e sucessivas, fora dos ciclos naturais de cheias e estiagens na amazônia, descalibraram essa técnica.

“As mudanças são radicais, o que embaralha o conhecimento tradicional do manejo do pirarucu, como o que diz respeito a prazos e repiquetes [cheias momentâneas dos rios durante a seca]. Não há mais previsibilidade”, afirma a antropóloga Edna Alencar, do Instituto Mamirauá.

“Tudo isso impacta na ecologia do peixe. A área do Capivara, por exemplo, era conhecida pela fartura de peixe pequeno”, diz o biólogo Jonas Batista, técnico do instituto.

Os moradores de São Francisco do Capivara também estão com dificuldades para pescar o tambaqui e outras espécies usadas nas refeições cotidianas. Eles recebem o Bolsa Família, mas a principal fonte de renda é a pesca.

“Estamos aqui empoçados”, afirma Jocimar Rodrigues, 36. “Eu não consigo me lembrar de secas piores do que essas de 2023 e 2024.”

Rodrigues diz que moradores de comunidades mais distantes passam fome.

Boa parte das famílias não tem acesso a água potável, e são precisos deslocamentos cada vez maiores para a pesca de subsistência.

No caso da farinha de mandioca, a produção reduziu pela metade. É o que ocorre na comunidade quilombola São Francisco do Bauana, vizinha de Apuí.

“As piores secas são as de 2023 e 2024, quando a gente produziu menos. Se não tem um canto para botar a mandioca de molho, a produção para”, afirma Adrison Rocha da Silva, 37, vice-presidente da comunidade.

Maria Ezimar, 53, está há dois anos sem acesso a poços em São Francisco do Bauana. Pela primeira vez, ela a família usam tanques de plástico na produção.

“Nos outros anos, não secava como agora. E a seca não demorava tanto”, conta Ezimar. “Está só a lama.”

Uma parcela expressiva dos produtores de farinha precisa de acesso rápido ao dinheiro das vendas e também de novas formas de escoamento do produto para as cidades. Por isso, é comum a existência de atravessadores. O quilo da farinha, pago por esses revendedores, sai por cerca de R$ 4. Quem consegue alcançar as feiras de Tefé pode vender o produto pelo dobro do preço.

A Apafe (Associação dos Moradores e Produtores Agroextrativistas da Floresta Nacional de Tefé e Entorno) desenvolveu uma marca para a farinha produzida nas comunidades, explicitando a origem e qualidade do produto. Nesse caso, o quilo da farinha pode alcançar R$ 14.

“A produção caiu muito, e há uma perda bem crescente das plantações”, afirma Zila de Castro, 38, que integra o conselho da Apafe.

A seca afeta a produção de agricultura familiar e o manejo de pesca de forma distinta em diferentes comunidades.

No Jurupari, no rio Japurá, os indígenas kokamas têm conseguido capturar poucos pirarucus, após longas jornadas para alcançar os lagos e transportar o peixe nas costas, em um percurso onde antes existia água. Eles também pescam tambaqui e surubim. Os peixes são levados para a feira de Alvarães (AM).

E, na comunidade Santa Clara, onde o Solimões também virou deserto, os agricultores desistiram de plantar melancia, após perdas em 2023. O cultivo de hortaliças, neste ano, foi deslocado para mais perto da água, em áreas que inundam na cheia.

Pescadores e agricultores que vivem diretamente os impactos da crise climática dizem que, apesar da previsibilidade da seca severa em 2024, não houve ações preventivas ou emergenciais por parte do poder público.

Os trabalhadores do pirarucu cobram acesso a cestas básicas e água potável, adiamento dos prazos dos planos de manejo do pirarucu e do tambaqui, antecipação do pagamento do seguro defeso —pago durante o período de reprodução de peixes.

Os produtores de farinha querem que as comunidades sejam equipadas com veículos que facilitem a logística durante a seca, além de apoio para escoar a produção.

Os municípios de Tefé, Alvarães e Maraã — aos quais estão ligadas as comunidades percorridas pela reportagem — não responderam aos questionamentos.

O governo Lula (PT) disse ter entregue 13 mil cestas de alimentos a famílias impactadas pela seca, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. Entre elas, 850 cestas para pescadores e extrativistas na região de Tefé e 80 para pescadores na região de Alvarães.

A previsão é de que sejam entregues mais 10 mil cestas de alimentos no médio Solimões.

No último dia 10, Lula visitou Tefé e anunciou medidas de combate à seca no Amazonas. Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, estados e municípios recebem recursos pelo Sistema Nacional de Defesa Civil, que podem ser usados na compra de água e comida. Uma sala de crise foi criada pelo governo para prestar assistência, disse a pasta.

Em nota, a gestão do governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), afirmou que “questões logísticas” atrapalharam a entrega de 2.000 cestas básicas destinadas a Maraã no último dia 14. Também estão previstas 2.000 cestas para a região de Alvarães. Segundo o governo, as duas cidades contam com purificadores de água.

Onde há manejo de pirarucu, a esperança é por um repiquete, um aumento momentâneo do volume de água antes da cheia. Se o igarapé subir 5 metros, os pescadores tentarão alcançar os pirarucus.

Fonte Original do Artigo: redir.folha.com.br

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